
Hoje vemos um episódio relatado em 2 Samuel 9, que tem como elemento principal a graça.
Davi, depois de um período de muito sofrimento e privação, em que andou fugido de Saul que o queria matar (1 Samuel 21 a 31), acabou por chegar ao trono de Israel, como Deus tinha prometido (1 Samuel 16: 12). Numa fase inicial teve muitas guerras, nas quais pela graça de Deus, Davi venceu os seus inimigos (2 Samuel 5 e 8).
Estava agora numa fase em que parecia ter tudo: paz, bens, fama, e outros reis como seus servos. Pela graça de Deus, Davi reinava em Jerusalém sobre um Israel unificado (2 Samuel 5: 1-4), numa situação de estabilidade e prosperidade dadas por Deus (2 Samuel 7: 1).
Mas não era isso que tornava Davi grande ou pequeno perante Deus, e sim o seu coração. E neste capitulo, vemos a grandeza de coração que Davi mostrou, ao querer cumprir a aliança que tinha feito com Jónatas (1 Samuel 20: 15 e 20: 42).
Vejamos então o texto.
2 Samuel 9: 1
Davi começou por tentar saber se havia algum descendente de Jónatas, a quem ele pudesse abençoar. Tudo isto por causa do amor e da aliança que tinha feito com Jónatas.
“Disse Davi: Resta ainda, porventura, alguém da casa de Saul, para que use eu de bondade para com ele, por amor de Jônatas?” (2 Samuel 9: 1)
Aliança entre Davi e Jónatas
Esta aliança foi feita numa altura em que Saul já tinha determinado matar Davi, porque sabia que Davi seria o futuro rei. Jónatas ajudou-o a fugir do seu pai, mas antes fizeram uma aliança, como vemos em:
1 Samuel 20: 15: “Nem tampouco cortarás jamais da minha casa a tua bondade; nem ainda quando o Senhor desarraigar da terra todos os inimigos de Davi.”
E 1 Samuel 20: 42: “Disse Jônatas a Davi: Vai-te em paz, porquanto juramos ambos em nome do Senhor, dizendo: O Senhor seja para sempre entre mim e ti e entre a minha descendência e a tua.”
Saul e Jónatas acabaram por morrer na batalha de Gilboa contra os filisteus (1 Samuel 31), e então ficou a aliança entre eles para Davi cumprir.
Vemos também em 1 Samuel 24: 20-22 que, para além da aliança com Jónatas, Davi já tinha jurado ao próprio Saul que não iria eliminar a sua descendência.
Quando Saul diz: “Agora, pois, tenho certeza de que serás rei e de que o reino de Israel há de ser firme na tua mão. Portanto, jura-me pelo Senhor que não eliminarás a minha descendência, nem desfarás o meu nome da casa de meu pai.” Vemos a reação de Davi: “Então, jurou Davi a Saul, e este se foi para sua casa; porém Davi e os seus homens subiram ao lugar seguro.”
2 Samuel 9: 2
Ao início parecia que não havia ninguém que soubesse alguma coisa da família de Jónatas, mas depois lá encontraram Ziba. “Havia um servo na casa de Saul cujo nome era Ziba; chamaram-no que viesse a Davi. Perguntou-lhe o rei: És tu Ziba? Respondeu: Eu mesmo, teu servo.” (2 Samuel 9: 2)
Ziba foi um antigo mordomo de Saul, que devia ter alguns recursos, porque a Bíblia menciona que ele tinha servos ao seu serviço. Ele era agora responsável por cuidar das terras que tinham pertencido a Saul.
Este Ziba parece ser um homem pouco sério. Porque mais tarde, quando Davi teve que fugir de Jerusalém à pressa por causa da conspiração do seu filho Absalão, que queria ser rei em seu lugar (2 Samuel 16: 1-4), Ziba usou estratagemas para denegrir Mefibosete e cair nas boas graças do rei David. Tudo para conseguir vantagem para si.
No regresso de Davi a Jerusalém, já com Absalão morto, vemos que Mefibosete conta uma história diferente (2 Samuel 19: 24-30).
2 Samuel 9: 3
O rei perguntou então a Ziba: “(…) Não há ainda alguém da casa de Saul para que use eu da bondade de Deus para com ele? Então, Ziba respondeu ao rei: Ainda há um filho de Jônatas, aleijado de ambos os pés.” (2 Samuel 9: 3)
Este filho de Jónatas, neto de Saul, aleijado de ambos os pés, como Ziba lhe chama, era Mefibosete. E devia ter cerca de 20 anos nesta altura. A desconsideração de Ziba para com Mefibosete era tanta que nem o trata pelo seu nome, apenas refere o seu estado físico.
Mefibosete tinha ficado coxo de ambos os pés devido a um incidente na sua infância, no seguimento da batalha de Gilboa, em que os israelitas foram derrotados pelos filisteus. O rei Saul e o seu filho Jónatas, morreram nesta batalha, e o povo de Israel teve de fugir. Nessa fuga, Mefibosete ficou ferido numa queda:
“(…) Era da idade de cinco anos quando de Jezreel chegaram as notícias da morte de Saul e de Jônatas; então, sua ama o tomou e fugiu; sucedeu que, apressando-se ela a fugir, ele caiu e ficou manco. (…)” (2 Samuel 4: 4)
Não se sabe, mas pode ter feito alguma fratura nos pés devido à queda, e não ter recuperado da maneira certa, e então ficou coxo para toda a vida.
2 Samuel 9: 4
Depois de saber da existência de Mefibosete, o rei Davi perguntou onde estava ele então. Ao que Ziba respondeu que estava em Lo-Bebar, a viver em casa de Maquir.
Este Maquir era filho de Amiel, e era um homem que devia ter muitas posses, porque quando Absalão se revoltou contra Davi para o tirar do trono, Maquir foi outro dos homens que abasteceram Davi na sua fuga (2 Samuel 17: 27-29).
Era de Lo-Debar, cidade localizada em Gileade, a leste do Jordão, a cerca de 16 km ao sul do mar da Galiléia. Pensa-se que seria próxima do que hoje é Amã, a capital da Jordânia.
2 Samuel 9: 5-7
Sabendo agora quem era e onde estava, Davi mandou trazer Mefibosete à sua presença.
Provavelmente Mefibosete teve muito medo do que se estava a passar. Deve ter pensado que David, agora que estava numa posição de ainda mais destaque e força, queria acabar com o resto da casa de Saul. Era comum nesse tempo, os reis orientais matarem todos os descendentes homens de um rei derrotado, para evitar que houvesse rebeliões.
A Palavra de Deus diz-nos que Mefibosete se inclinou, prostrou-se com o rosto em terra e disse: “Eis aqui teu servo!” (2 Samuel 9: 6)
Mas sabemos que a intenção de Davi não era matá-lo, e sim honrá-lo e cuidar dele: “Então, lhe disse Davi: Não temas, porque usarei de bondade para contigo, por amor de Jônatas, teu pai, e te restituirei todas as terras de Saul, teu pai, e tu comerás pão sempre à minha mesa.” (2 Samuel 9: 7)
Este amor que Davi demonstrou a Mefibosete, pode ser comparado ao amor de Deus por nós. Vemos que Davi amou Mefibosete não porque ele merecesse, mas por causa do amor que Davi tinha por Jónatas e por causa da aliança que fez com ele. O nosso Deus também nos ama, não porque nós mereçamos alguma coisa, mas nos méritos de Jesus, e na aliança de salvação que fez com os seus por meio d’Ele.
2 Samuel 9: 8
A reação de Mefibosete perante este favor imerecido, foi inclinar-se e perguntar quem era ele para receber tal coisa. Chegou a comparar-se a um cão morto. E nesta altura os cães não eram animais domésticos como agora, tinham pouco valor, e um cão morto, esse não tinha valor algum.
“Então, se inclinou e disse: Quem é teu servo, para teres olhado para um cão morto tal como eu?” (2 Samuel 9: 8)
Mefibosete tinha consciência que não merecia a graça que o rei lhe estava a demonstrar, e nem sequer tinha como lhe retribuir ou pagar de volta.
Nós precisamos de ter esta consciência, que em nós não há nenhum valor. Temos que ser humildes e reconhecer que se não for Deus a olhar para nós, não passamos de cães mortos.
Não há nada em nós que nos permita conseguir a salvação, essa é uma obra da soberana Graça de Deus (Efésios 2: 8-9). Não temos meios de pagar por ela. O preço foi altíssimo, pago por Jesus, ao morrer na cruz e ser ressuscitado pelo Pai.
Já como cristãos salvos, continuamos a ser fracos e desobedientes aos mandamentos de Deus. Por isso, continuamos a não ter mérito em nós. É só nos méritos de Jesus que Deus pode olhar para nós e ver algo bom. Por essa razão, continuamos sempre dependentes da misericórdia e graça de Deus.
2 Samuel 9: 9-13
Davi passa então a dar instruções acerca do que devia ser feito. Tudo o que pertencia a Saul era agora de Mefibosete. Ziba, a sua família e os seus servos, passariam a ser servos de Mefibosete, e deviam trabalhar a terra e recolher os seus frutos, para que a casa de Mefibosete tivesse pão para comer. No entanto, Mefibosete, iria comer sempre no palácio, à mesa do rei (2 Samuel 9: 9-10). Que privilégio, que honra, para alguém que se considerava um cão morto!
No versículo 11, vemos que Ziba acatou a ordem do rei, embora isso não deva ter sido fácil. Ele era o responsável pelas terras de Saul, e agora passaria a servir Mefibosete.
Quanto a Mefibosete, passou a viver em Jerusalém com a mulher e o filho Mica (v. 12 e 13), e a comer à mesa do rei, como se fosse um dos seus filhos.
Aplicações
No campo das aplicações práticas para nós, podemos olhar para este episódio em dois aspetos: graça e fidelidade.
Graça
A graça de David para Mefibosete pode ser comparada com a graça de Deus para connosco em Jesus (na salvação, e no cuidado constante). Depois da graça, Mefibosete iria viver na presença do rei, e comer à sua mesa como um dos seus filhos.
A graça do Senhor para connosco:
– Deve fazer-nos viver na consciência de que estamos constantemente na presença de Deus, o nosso Rei, e isso deve levar-nos a viver uma vida que reflita o Seu temor, a reverência da Sua Pessoa.
– Esta graça recebida também permite sentar-nos à Sua mesa – na Ceia do Senhor e, um dia no futuro, nas Bodas do Cordeiro.
– Esta graça também faz com que sejamos acolhidos na família do Rei, como seus filhos adotivos por Jesus.
– Tal como Mefibosete, a nossa vida deve mostrar uma imensa gratidão e uma imensa humildade por esta graça. Devemos viver uma vida transformada, de serviço e para a glória de Deus, que nos salvou e continua a cuidar de nós.
– E este reconhecimento da graça recebida, da tamanha graça imerecida, deve levar-nos a mostrar graça a todos os que nos rodeiam. Incluindo inimigos. Pois quem era Mefibosete, senão alguém pertencente a uma família que tinha, durante anos, procurado matar Davi? A resposta natural seria pagar na mesma moeda, mas não foi isso que Davi fez. E, apesar das nossas inúmeras ofensas, não é isso que Deus faz connosco. Tudo, por causa de Jesus.
Fidelidade
A fidelidade de Davi à aliança com Jónatas pode ser comparada à fidelidade de Deus à Sua aliança com a Humanidade. Deus não muda, e é sempre fiel às Suas promessas.
– Em reposta a esta fidelidade, também nós devemos procurar ser fiéis a Deus. Mesmo sendo imperfeitos, temos um compromisso com Ele e devemos aplicar as nossas energias no cumprimento da Sua vontade.
– Devemos também ser fiéis aos compromissos que fazemos neste mundo. Ao proceder deste modo, refletiremos Aquele a quem pertencemos e honramos, e assim também podemos estar a ser sal e luz no mundo que nos rodeia.
“Volta-te, SENHOR, e livra a minha alma; salva-me por Tua graça.” (Salmos 6:4)
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